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A crítica de Araripe Jr., por Múcio Leão

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Leia abaixo trecho de conferência de Múcio Leão sobre Araripe Jr., publicada originalmente no Jornal do Commercio em 28 de agosto de 1955 [De Araripe Jr., a Cultura e Barbárie acaba de editar Raul Pompéia. O Ateneu e o romance psicológico].

A CRÍTICA DE ARARIPE JÚNIOR

————————-

(DO NATURALISMO AO SUBJETIVISMO CRÍTICO)

Conferência feita pelo Sr. MÚCIO LEÃO, no Curso de Crítica da Academia Brasileira de Letras, em 18 de Agosto de 1955

 

ATIVIDADE DE UM ESCRITOR

A atividade espiritual de Araripe Júnior foi vária. Examinando uma sua ficha bibliográfica, vamos encontrando os seguintes gêneros: o conto, representado pelo seu livro de estréia, os Contos brasileiros, editado ainda no Recife, em 1806; o romance, representado ora pela narrativa histórica, nacionalista ou alencariana, do tipo Jacina, a Marabá, que é uma crônica do século XVI[,] do Reinado [Reino] Encantado e do Cajueiro do Fagundes, ora pela narrativa de tendência mais modernas [sic], preocupada com a análise e o diagnóstico do espírito, como Miss Kate; o estudo social ou histórico, como a conferência relativa ao Papado, ou o ensaio relativo ao papel do terror nas solciedades cultas e, enfim, a crítica.

Nesse último terreno, a bibliografia de Araripe Júnior é complexa e dispersiva a mais não poder. Quem quiser dizer que conhece bem a sua atividade de crítico tem de ler os vários livros do gênero que ele editou: a Carta sobre a literatura brasílica, ensaio que lançou aos 21 anos de idade; o José de Alencar, cuja primeira edição é de 1882, mas que apareceu antes nas colunas do Vulgarizador e nas da Revista Brasileira; o Dirceu, de 1890; o Gregório de Matos, de 1894; o Movimento de 1893 editado em 1895; e o Ibsen, editado em 1911.

São livros todos hoje longamente esgotados. Mas, com o favor das traças, o estudioso ainda os poderá encontrar, numa ou outra biblioteca mais zelosa.

A grande dificuldade no estudo desse escritor começa, porém, agora. Terminada a leitura desses livros, o apaixonado de Araripe Júnior, ou o seu simples leitor, tem de mter-se na Biblioteca Nacional, para tomar conhecimento da vasta obra crítica que ele deixou perdida em colunas de velhos periódicos. É uma tarefa difícil, sem dúvida, mas que não pode deixar de ser encarada, dada a extrema importância que têm muitos desses trabalhos. Enumerarei apenas algumas: o estudo relativo às Enfermidades estilísticas da nova geração, que se encontra nas colunas da Semana, em nove ou dez números do ano de 1886; o ensaio relativo ao Naturalismo e Pessimismo, que se encontra em cinco números da mesma revista, no ano de 1887; o estudo relativo a Terra de Zola e ao Homem de Aluísio Azevedo, que se encontra em 25 números do Novidades de 1888; o estudo relativo ao Ateneu de Raul Pompéia, publicado em 19 números do mesmo Novidades, nos anos de 1888 e 1889; tantos outros ensaios, de maior significação na obra do escritor, aparecidos ainda na Semana, ou então no Almanaque Brasileiro Garnier, ou no Paiz, ou no Jornal do Commercio, ou em alguns outros dos inúmeros lugares em que Araripe Júnior colaborou.

É preciso fazer o reparo de que alguns desses trabalhos são imensamente importantes, não só quando referidos à bibliografia de Araripe Júnior, mas quando referidos à própria cultura brasileira. Dois deles – o estudo relativo a Zola e a Aluísio Azevedo e o estudo relativo a Raul Pompéia – têm, ao que posso julgar, mais importância do que todos os livros de crítica que Araripe editou, salvo evidentemente o Ibsen. Porque este, ao que posso também julgar, é um livro único, na bibliografia do gênero, na língua que falamos.

POSIÇÃO DE ARARIPE JÚNIOR

Araripe Júnior faz parte da trindade dos grandes críticos brasileiros do século passado – trindade que de há muito se convencionou existir, em manuais didáticos de nossa história literária. É aí companheiro de Sílvio Romero e de José Veríssimo. Sem negar o extraordinário papel que cada um desses críticos teve na evolução mental do País, eu peço licença para acrescentar ao grupo um quarto nome – de João Ribeiro, cuja vida se prolongou um pouco mais que a desses três ilustres êmulos, porém que, nascido em 1860, pertence historicamente ao mesmo período de Araripe, Sílvio e Veríssimo.

Fixando as figuras desses quatro homens, vamos encontrá-los diferentíssimos. O mais grave deles todos, o mais sisudo e o mais duro, o que parece mestre-escola dos quatro, é exatamente um dos mais jovens – é José Veríssimo. Nascido em 1857, era mais moço seis anos do que Sílvio Romero. Entretanto note-se a diferença de espírito desses dois homens: empenhados em uma polêmica literária, o agressor (era sempre o agressor…) escreve contra o confrade um livro violento e sem nenhum respeito, ao qual põe este título que vale como uma vaia – Zeverissimações ineptas da crítica. E como se comportava o agredido? Publicando um livro com este título digno do mais severo Scholar de Londres: O que é literatura.

Nesse conjunto – entre a boemia trêfega e escandalosa de Sílvio e a gravidade conselheira de Veríssimo – Araripe Júnior e João Ribeiro têm uma posição parecida: a de um semi-sorriso tranqüilo e o seu tanto ou quanto cético, a da acolhida sempre simpática para todos os que surgem, a da maior e da mais fina acuidade na compreensão dos grandes fatos literários que se vão produzindo no mundo, a de uma curiosidade insaciável por tudo o que diz respeito aos fatos do espírito, a de uma ânsia de tudo conhecer, não apenas pelo intuito de julgar, mas pelo prazer gratuito de apenas conhecer – o que é a mais deliciosa das volúpias humanas.

E podemos assim ver, desde logo, que são eles dois, Araripe Júnior e João Ribeiro, os críticos que mais caminharam no seu tempo, na análise das produções do espírito, no Brasil e no mundo. – João Ribeiro chegando até à compreensão perfeita dos modernos, de um Mário de Andrade e de um Antônio de Alcântara Machado, como há de nos mostrar com a  sua sensibilidade de poeta e crítico, Cassiano Ricardo. E Araripe Júnior,a ceitando e amando as correntes do nefelibatismo ou do decadismo, e incorporando à sua doutrinação de julgador literário – ou, melhor ainda, de criador literário – as concepções renovadoras, com que na França ou na Itália, na Inglaterra ou na Alemanha, os sábios e os filósofos começavam a revolver os vastos territórios do espírito. Não sei se chegou a conhecer Freud. Mas da leitura de certas páginas de Miss Kate nos fica a idéia de que pôde estudar o psicólogo morávio. Atribuir-lhe esse conhecimento hoje, quando a psicanálise é expressão que entrou até para o vocabulário infantil, seria coisa vulgar. Pensar que ele talvez conhecesse o mestre de Viena já em 1910, quando os estudos freudianos apenas começavam a incorporar-se à literatura, é, porém, mostrá-lo em pleno exercício da mais bela das qualidades que ele possuía – a de uma incessante infinita curiosidade espiritual.

MÉTODOS DE CRÍTICA

Se quiséssemos ter uma idéia do que era Araripe Júnior como crítico, poderíamos consegui-lo através de uma comparação do comportamento crítico dele com o de José Veríssimo no ato de criticar. E isso se dirá em duas palavras: Veríssimo examinará a obra literária, procurando nela sobretudo o que falta; Araripe não lhe porá reparo nas falhas; verá sempre o que ela de fato existe.

É o próprio Veríssimo quem implicitamente se encarrega de fazer essa distinção, ao anotar sobre a crítica do seu ilustre confrade o seguinte: “O Sr. Araripe Júnior tem por todas as produções, não certamente a mesma estima ou o mesmo apreço, que lhe não consentem nem a sua educação literária, nem o seu bom gosto, nem as suas capacidades críticas, mas a mesma condescendência como que paternal e bonacheirona, e, se não me engano, no fundo cética”.

E na mesma página traça austeramente uma condenação formal contra aquela crítica de paternalidade e bonacheirice: “A crítica é tão incapaz de favorecer uma literatura com a benevolência quanto é incapaz de prejudicar com o vitupério. As literaturas só as fazem as obras excelentes. A nossa já tem uma dúzia dessas. Elas servem para nos mostrar que somos capazes de as fazer, e portanto devem servir à crítica como termo de comparação, como pontos de referência. Tudo o que estiver abaixo daquele estalão não deve merecer para ela. Só assim, penso eu, poderá o crítico desempenhar-se no nosso meio da sua função modesta, mas útil”.

OS PRINCÍPIOS DE UM CRÍTICO 

No Novidades de 6 de Dezembro de 1888 encontro o primeiro artigo da série que Araripe Júnior dedicou ao Ateneu de Raul Pompéia. E desde logo, no pórtico desse estudo de tão largas proporções, posso ler a enunciação de cinco princípios que são como que a orientação, como que o rumo, do espírito metafísico de Araripe Júnior, nesse dédalo da crítica. Eis os princípios a que me refiro:

“A – A obra de arte é uma máquina de emoções.

B – Há uma perspectiva interior que todo artista procura reproduzir no espírito de outrem.

C – Essa reprodução não se pode fazer, na arte escrita ou falada, senão pela ordem direta do discurso; daí uma sintaxe superorgânica, alma de todo o livro ou peça literária.

D – Os órgãos capitais dessa sintaxe são o acento periodal e a elipse interior; é por meio deles que conseguem exercer a sua ação especial os temperamentos, que mais geralmente se dividem em subjetivistas e objetivistas.

E – O estilo é a resultante, em parte imprevista, do conflito entre o temperamento de cada indivíduo e o mecanismo das formas literárias já criadas por um povo, por um grupo ou por uma escola.

F – Não é impossível reduzir todos estes princípios à lei que os gramáticos denominam de menor esforço, e que Spencer, na mecânica mental, designa sob o nome de economia de funções.”

Parece, em verdade, fantástica, essa linguagem de um crítico: essa sintaxe superorgânica, alma de todo o livro ou peça literária e esse acento periodal… Sílio Romero com ela se escandaliza, e nos conta a gênese de tão estranhas concepções. Araripe Júnior tentara, em 1884, fazer um concurso para uma cadeira de língua portuguesa. Não o conseguiu. Mas aprofundou, nessa ocasião, seus estudos de filologia. E “de então em diante, ele começou a ver eclipses [sic] e crases por toda a parte e entrou a sonhar com a síntese super-orgânica…”

Sílvio Romero refuta, a meu ver com toda a vantagem, essa parte das divagações em verdade aéreas e quase desprovidas de lógica, em que a esse tempo se perdia o espírito de Araripe Júnior.

ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA 

É fora de dúvida que o sonho da vida de Araripe Júnior consistiu em escrever uma história da literatura brasileira. Encontramos em um dos seus ensaios da Semana alguma coisa que seria como que a síntese de uma introdução a essa obra. E cencontramos também, no título geral ou anterior, que ele punha em seus vários volumes relativos aos autores nacionais – Literatura Brasileira – a indicação desse propósito.

Desta obra, que teria evidentemente vastíssimas proporções, possuímos hoje em livro apenas alguns capítulos – Gregório de Matos, o Dirceu, o José de Alencar, o Movimento de 1893. Não saíram na ordem em que os enumero, e que é a ordem cronológica; porém anarquicamente – o José de Alencar em primeiro lugar; em segundo lugar o Gregório de Matos; em terceiro lugar o Dirceu.

São assuntos bem escolhidos, e que dão ao crítico e ao historiador oportunidade para a análise do Brasil espiritual em momentos vários e sob luzes diferentes. O estudo sobre Gregório de Matos sugeriu-lhe um exame do alvorecer do nosso País, quando o barco que se vai transformar no monumento da nacionalidade está ainda mole e informe. O estudo sobre Gonzaga – que é o mais ligeiro e menos aprofundado dos três – permitiu-lhe uma análise do Brasil um pouco amadurecido, já sonhando, pelos seus poetas e pelos seus homens de estudo, conquistar a Independência. O estudo sobre José de Alencar propiciou-lhe uma visão de conjunto sobre a realidade brasileira já livre, já plenamente formada. O estudo sobre o movimento de 1893, afinal, favoreceu-lhe uma longa perspectiva sobre o Brasil mais moderno – o desvairado Brasil dos tempos republicanos e florianistas.

Em tudo isso, temos o crítico caracterizado pelos seus dons naturais de argúcia e penetração e, também, pelos dons que ele em si mesmo desenvolveu, os da meditação e da cultura.

ORIENTAÇÃO CRÍTICA E FILOSOFIA 

       Araripe Júnior era filho da Faculdade de Direito do Recife, onde se formou na mesma turma de Tobias Barreto. Isso bastará, talvez, para mostrá-lo em sua febricitante aquisição de conhecimentos, lendo os grandes mestres que o exemplo e a palavra de Tobias Barreto difundiam entre os moços do tempo, lendo Comte e Kant, Haeckel e Spencer, e se tornando positivista, evolucionista, materialista…

À leitura desses filósofos Araripe Júnior acrescenta, apaixonadamente, uma outra, a de um autor que vai ser o grande conselheiro do seu espírito, o seu companheiro dileto de todos os estudos – Hipolito Taine. É orientado pelas idéias do autor da História da Literatura Inglesa, é levando em conta o seu princípio essencial em crítica – a teoria da raça, do meio e do momento – que ele giza e elabora os seus grandes quadros de biografia e análise literária.

Veja-se, por exemplo, o Gregório de Matos. – O satírico baiano ali está, sem dúvida, naquele livro, num grande retrato de corpo inteiro. Mas, no fundo do quadro, o que de fato está é a velha Bahia, o meio híbrido que nela se criou, e onde repontou, como uma planta exótica, o Boca do Inferno; e estão todas as peculiaridades da hora em que viveu o irreverentíssimo cantor do Marinícolas.

No Dirceu encontraremos idêntico processo. O estudo se inicia com um painel relativo à Inconfidência, e é nessa moldura que vamos achar o esboço – um esboço apenas – do grande poeta de Marília.

E igualmente no José de Alencar. Aqui está o escritor incomparável, o inexcedível mestre do romance romântico brasileiro; mas, iluminando-o, estão, em torno dele, os elementos que o explicam: a gente a que pertence, e dentro da qual se destacava a figura gloriosa da avó; o meio em que se fez escritor – o ambiente de família, o ambiente do Ceará, calcinado pela seca e tão estóico sempre em seus sofrimentos, o ambiente carioca em que se fez homem e se consagrou como romancista…

MEDITAÇÃO SOBRE A SÁTIRA 

Araripe Júnior é dono de um pensamento essencialmente paradoxal, muitas vezes fugitivo, dificílimo de se apanhar em sua inteireza e em sua claridade. Percebemos que, no fundo, o que ele mais ama é o debate ágil das idéias, é até mesmo deixar o leitor surpreendido com a finura ou o furta-cor de um argumento. Deveria deliciar-se com a leitura dos velhos livros em que encontrasse, por exemplo, esta pergunta logicamente risonha: um mentiroso que diz que mente está mentindo? Ou a graça filosófica desta argumentação silogística: “Conheces este homem escondido num véu?” “Não.” “É teu pai; então não conheces teu pai”.

Num tal homem, de pensamento aéreo e fugidio – já José Veríssimo lhe censurava o imenso inconveniente da sua subjetividade – é difícil discutirmos as idéias. Estas se apresentam nele em gradação sutilíssima – como as cambiâncias do pescoço de um pombo, diria Renan. E, entretanto, há teorias, pontos de vista, opiniões, no enorme acervo de idéias que ele agitou, que deveriam aqui ser debatidas ou apenas afloradas.

Sua teoria sobre a sátira, por exemplo. Em primeiro lugar, ele me deixa numa perplexidade, sem mais saber qual o seu conceito de sátira, quando me diz que “os irracionais são muitas vezes satíricos”. Estabelecido este princípio, que já é difícil de aceitar, dá-me esta demonstração – que positivamente eu não aceitaria nunca: “Não é pouco comum verem-se nas ruas das cidades cães alterosos e soberbos de casas fidalgas atirarem-se em troça sobre o pobre lazarento, faminto de gozo, que teve a desventura de vir, com a cauda entre as pernas, mariscar as migalhas de alguma cozinha de restaurante”.

Como se ainda fosse pouco, acrescenta: “Essa hostilidade dirigida contra a fraqueza, contra a miséria, que raramente deixa de confundir-se com o ridículo, tive eu, um dia, ocasião de observar, com pasmo, em um frangote, garboso e de linda plumagem, o qual com uma insistência maligna e feroz se entretinha em beliscar um pinto depenado e engrujado a quem o gôgo tirara os últimos resquícios de alegria”.

Ora, a mim me parece que pretender atribuir intuitos de sátira a um cão, a um cão embora gordo, que ataca um cão lazarento, ou a um frangote, um frangote embora garboso e de linda plumagem, que belisca um pinto doente de gôgo – é abusar além da medida dos direitos da crítica subjetiva. Como poderia saber Araripe Júnior que no espírito daquele cão ou daquele frangote estava o desejo de fazer sátira – e não aquele impulso natural de crueldade que faz do cão o lobo do cão, que faz do frango o lobo do frango – e que é o mesmo impulso que faz do homem o lobo do homem?

Ele precisava, porém, do exemplo do cão e do exemplo do frango, para a documentação de sua tese: a de que a sátira – fenômeno social e literário, e antes disso fenômeno fisiológico – não é senão “a irritação do forte, sadio e triunfante, contra o fraco que se arrasta na sua impotência, na sua tristeza, intanguido pelo aleijão”.

E já aí temos um dos males do tainismo do crítico brasileiro: ele estabelece, num rigor de esquema algébrico, a sua doutrina; e o mais que existe há de passar a servir à demonstração dessa doutrina. A sátira é a vingança do forte contra o fraco… Mas então será constituída de fortes essa legião de poetas ou de prosadores satíricos, muitos dos quais (a história literária dá exemplos) realizam suas obras-primas implacáveis jazendo em leitos de enfermos?

Pois é o forte o que – tomando como campo de argumentação apenas a literatura da nossa língua – se vê na obrigação a recorrer ao véu do anonimato, para poder ferir com uma seta implacável, que se chamará a Arte de Furtar, os representantes do reio e o próprio forçado a recorrer ao anonimato para atinger com certeiros golpes o Fanfarrão Minésio das irreverências das Cartas Chilenas? Será o forte, o sadio, o triunfante, o poeta baiano, erguendo-se contra a sociedade do seu tempom fulminando os régulos que oprimiam com pés de semi-deuses o devastado povo brasileiro do século XVII – e recebendo, por isso, a proibição policial de fazer versos?

Ao contrário disso, o que nos parece evidentemente defensável – se levarmos em conta tais exemplos – é a tese oposta: a de que a sátira é a vingança do pobre, do desvalido, do frágil, contra o poderoso e o opressor.

Outros pontos ofereceriam ainda, no ensaio sobre Gregório de Matos, longa margem à nossa meditação. Araripe Júnior estabeleceu, por exemplo, que  “a sátira é a malignidade traduzida em estilo poético”. Será lícito lhe perguntarmos, consultando outra vez a história literária, se acaso a sátira de tantos poetas – a de um Juvenal, por exemplo – não tem uma intenção, uma finalidade tão relevante, que a transporta para além do termo da simples malignidade e a coloca no terreno da moral?

Não pretendo demorar mais no assunto. Cedo-o a quem o quiser. Como cederei também o desejo de debater essa dura afirmativa, que de forma tão sumária condena o pobre Gregório de Matos: “um notabilíssimo canalha, eis o que ele era”.

Não haverá por aí um advogado de causas confusas que deseje rever o pleito de Araripe Júnior contra Gregório de Matos?

O ESTUDO SOBRE GONZAGA 

No ensaio sobre Tomás Antônio Gonzaga não descubro nenhuma dessas doutrinas avant la lettre em que a subjetividade de Araripe Júnior se deliciava. Encontro, porém, muitas idéias que merecem comentário – ora de natureza literária, ora de natureza histórica.

Esta afirmativa, por exemplo. – Refere-se ele à violenta repressão promovida por D. Maria I contra os Inconfidentes mineiros. E diz: “Não me parece bem provado que a realeza necessitasse naquela época de qualquer efusão de sangue”.

Mas como não precisava? Aquela época era exatamente a mesma em que o maior povo do nosso continente havia quebrado as algemas que o prendiam à Europa. Era a época em que em um dos maiores países europeus estavam correndo, com uma vibração elétrica indefinível, as idéias que iam revolucionar o mundo. A realeza lusitana tinha, pois, todo o interesse em dar quanto antes aos brasileiros exemplos formidáveis, que eles jamais esquecessem. E só assim se explica o calvário de Tiradentes, o de Alvarenga Peixoto, o de Tomás Antônio Gonzaga, o de Cláudio Manoel da Costa.

A brutalidade dos agentes do poder, diante dos frágeis poetas que aqui confabulavam em sonhos filosóficos de liberdade e independência, é tão atroz, é tão injustificada, que muita vez eu tenho meditado que o drama da inconfidência foi alguma coisa urdida pela polícia lusitana, uma espécie de plano Cohen da era colonial.

No caso de Gonzaga, por exemplo: tudo o que pesou sobre ele, na acusação, deve ter sido, em verdade, fruto da mentira e da intriga – como ele próprio disse, em seus depoimentos. Pois é crível que um homem já maduro, loucamente apaixonado por uma rapariga em flor, dono de um ótimo emprego, português de nascimento e de mentalidade – fosse lá se meter numa aventura de impervidência e de audácia daquelas, numa aventura em que não havia o mínimo resquício de possibilidade de vitória?

A mesma reflexão podemos transferir para os outros poetas arrolados na denúncia de Vila Rica – no que se refere a um pobre homem já entrado em anos, como Cláudio Manoel da Costa, ou a um rico e poderoso senhor como Alvarenga Peixoto.

Seriam, sim, todos eles, teóricos da liberdade, já que eram ledores dos enciclopedistas e de outros demônios tenebrosos. Mas pensaram em pegar em armas para um movimento de subversão, aprontarem-se para uma luta de morte – disso os livrasse Deus!

O Visconde de Barbacena, porém, precisava de mostrar uma grande cópia de serviços à coroa. Mostrou-a esplendidamente.

Era já uma tradição da História do Brasil. Não fizera o mesmo, um século antes, o Conde de Assumar, na violência implacável com que castigou o heróico Felipe dos Santos? E que era essa – a de agravarem os processos da violência, para com isso mostrarem maior amor à realeza, a política dos agentes do poder do governo português – podemos vê-lo, anos depois, na inútil e ostensiva crueldade com que o Conde dos Arcos, nos tribunais militares e nas alçadas civis de D. João VI, castigou, levando-os ao fuzilamento e à força, os revolucionários pernambucanos de 1817.

Isso, porém, é um simples aspecto – e não literário, porém antes histórico – da monografia sobre Gonzaga.

A meu ver, entretanto, nesse estudo se contém uma informação que aqui deve ser posta em relevo. É aquele trecho em que Araripe Júnior (note-se que este livro foi ditado em 1890) se transporta a uma escola literária nova, que está surgindo na França – a dos Decadentes ou Simbolistas – e aponta em Gonzaga uma espécie de antecipação remota desse grupo. É aí também que ele agita diante dos nossos olhos os problemas da metáfora e da palavra – os quais constituem, como se sabe, para muitos dos maiores poetas da hora de hoje, a chave do país encantado da poesia.

Amigo da clareza lógica da frase, Araripe Júnior não tem a esse tempo grande apreço pela intuição simbolista. E lhe parece que “os poetas da nova escola chegarão até o ponto de perderem de vista o ambiente” e de caírem em uma espécie de niilismo literário.

ESTUDO SOBRE JOSÉ DE ALENCAR 

            A José de Alencar dedicou Araripe Júnior um dos seus estudos mais construídos e orgânicos. Eram os dois escritores primos em segundo grau – Alencar neto e Araripe Júnior bisneto de D. Bárbara de Alencar a heroína fulgentíssima da revolução pernambucana de 1817.

Estava Araripe nos seus 12 anos de idade e era aluno do Colégio Bom Conselho, no Recife, quando passou pela Capital pernambucana o romancista já ilustre, já autor dessa obra-prima que é o Guarany – que ia ao Ceará pleitear uma eleição a deputado. O que o jovem sentiu foi um choque para a vida toda, como o confidenciará em vários lugares. “É incalculável o abalo que me causou então esse olhar distraído e ao mesmo tempo brilhante, esse olhar excepcional que todos nós lhe admirávamos, e que denunciava o vidente em constantes comunicações com os intermúndios do pensamento… “Considero essa data (o dia em que viu o romancista) como um acontecimento em minha vida…” “O certo é que, depois de 1860, foi-me o vulto daquele homem obsessão constante nas aulas, nos passeios, no repouso..”

É sob o influxo de Alencar que ele vai de certa forma construir toda sua alma de homem de letras; os seus romances todos, sob um ou outro ângulo apresentarão um aspecto alencariano só discrepando disso o romance de última fase, Miss Kate, que mostra antes afinidades com Machado de Assis – o Machado de Assis dos estudos dos loucos, do estudo de Quincas Borba e de Rubião, um Machado de Assis que não tivesse tomado por norma literária o sutil preceito glissez, n’appuyez pas…

Há naquele livro páginas do maior interesse para os amigos de José de Alencar. Esta, por exemplo, em que Araripe estuda a atividade jornalística do escritor, caracterizando a sua tendência para o agradável. Esta outra em que mostra que a originialidade de Alencar como romancista consiste na subordinação bravia a que ele sujeita à beleza feminil tudo o que existe, seja ainda o enorme ou mesmo o repelente. Esta outra, em que demonstra a fraqueza do romance “O Guacho” [O Gaúcho], baseando a demonstração nestes dois elementos: primeiro em que Alencar escreveu o livro sem ter tido conhecimento direto e formal do ambiente em que a ação se desenvolvia; segundo em que pela primeira vez no Gaúcho, a mulher deixa de ser o ponto central de suas composições. Esta outra em que defende a língua diferencial de Alencar, e chega a sustentar, com ardor e eloqüência, a autonomia de língua brasileira. E, enfim, aquela em que ele relata com indignação as malícias com que ele costumava ferir a Alencar, no mais sutil de sua sensibilidade de escritor e de homem, um rude marçano da literatura portuguesa, José Feliciano de Castilho.

O MOVIMENTO DE 1893

           Foi em 1894 que, nas colunas da Semana, Araripe Júnior publicou uma série de artigos relativos ao movimento literário registrado no Brasil no ano anterior. Trata-se de um vasto estudo de conjunto, de perspectivas críticas ou filosóficas, mas amplas certamente do que aquelas outras dos trabalhos do mesmo gênero que José Veríssimo, seguindo o modelo fornecido pelo confrade, adotou para fecho dos volumes de seus Estudos de Literatura Brasileira.

Os trabalhos de Veríssimo, nesse gênero, prologaram-se até 1905. De sorte que temos, se me não engano, doze anos de atividade espiritual dos brasileiros austeramente balanceados e estudados por dois dos mais eminentes críticos nacionais. É pena que nenhum outro crítico – o próprio Veríssimo, falecido em 1918, poderia talvez ter levado o trabalho até 1914 ou 1915 – tivesse tomado a seus ombros a excelente tarefa, que deveria ter sido continuada até hoje. A partir de certo momento, a própria Academia poderia ter reivindicado para si essa atividade. Pelo menos o Retrospecto Literário, que ela cada ano encarrega o secretário-geral de fazer, nada mais é, em essência, que um balanço crítico das atividades da instituição, e mesmo do País, no período a que o trabalho se prende.

Não seria dos melhores, talvez, nem dos mais intensos, o movimento literário do Brasil, naquele ano de 1893. Ano climatérico, cortado das inquietações e das amarguras de uma guerra civil, com o País dominado pelas sombras do ódio, repartido em dois grupos que se queriam mutuamente exterminar em hecatombes formidáveis – não haverá de ser dos mais fecundos no terreno literário. Araripe Júnior, porém, conseguiu fazer jorrar a água do rochedo. Deu-nos, com material tão escasso, um livro de mais de duzentas e cinqüenta páginas, e um livro em que estão esplanadas e debatidas grandes questões do espírito brasileiro e mesmo do espírito universal.

Foi-lhe censurada, na ocasião em que saiu o livro, a excessiva benevolência, o talvez cético paternalismo para com os estreantes, a non-chalance. E, com efeito, haverá figuras e nomes – um Luiz Rosa, um De Brito Mendes – que o passar dos dias apagou por completo de nossa memória, e que hoje somente vivem nessas páginas do analista indulgente.

Mas não é somente esse o material de que Araripe Júnior trata nestas páginas. São assuntos seus, aqui, um grande poeta como Cruz e Sousa, uma poetisa de harmoniosos ritmos parnasianos como Francisca Júlia; prosadores de grande fibra como Raúl Poimpéia e como Coelho Neto. E os assuntos debatidos na sugestão desses poetas e desses prosadores são, às vezes, importantíssimos: é o problema do nvo dinamismo da poesia; o do nativismo brasileiro (a propósito das Festas Nacionais, de Rodrigo Otávio); o da democracia representativa (a propósito do livro de Assis Brasil); o do parlamentarismo ou presidencialismo (a propósito de Felisberto Freire); o da elaboração dos livros de história destinados aos estudantes (a propósito de João Ribeiro); o da destruição do romantismo (também a propósito de Sílvio Romero); o da chamada poesia científica (a propósito de Martins Júnior).

E a galeria de outros autores, de que ele vai tratando com maior ou menor atenção, se compõe de nomes muita vez dignos de nosso respeito, como entre tantos outros, o de Inglês de Sousa, o de Zalina Rolim, o de Sílvio de Almeida, o de Figueiredo Pimentel, o de Victor Silva, o de B. Lopes, o de Oscar Rosas, o de Lopes Filho, o de Sabino Batista, o de Demóstenes de Olinda, o de Viveiros de Castro, o de Virgílio Várzea, o de Bianor de Medeiros, o de Adolfo Caminha, o de Délia, o de Aluísio Azevedo, o de José de Alencar (a propósito da Encarnação), o de Lúcio de Mendonça, o de Cristiano Benedito Otoni, o de Afonso Celso, o de Clóvis Beviláqua, e, para encerrar tudo, ode Max Nordau.

Um ano que projeta na tela de uma análise literária figuras de tais proporções, não poderia ser classificado, como classificaram alguns dos críticos de Araripe Júnior, como um ano estéril ou insignificante.

OS SIMBOLISTAS 

Nesse vasto quadro da literatura brasileira nos idos de 1893, estão agitados, realmente, assuntos de transcendência na evolução espiritual do nosso País. As proporções do estudo que estou elaborando aqui não me permitem examinar mais detidamente os temas nem as idéias do crítico nesse livro. Há contudo, perdido nas páginas do Movimento de 1893, um assunto em que não quero deixar de me fixar: refiro-me ao simbolismo.

Naquele momento a escola nova estava apenas chegando ao Brasil. E o ambiente que aqui encontrava por parte dos valores consagrados era o da hostilidade, o da incompreensão.

Araripe Júnior foi dos poucos que desde o primeiro instante compreenderam e aceitaram o novo ideal estético. Ele refere que deveu o conhecimento do simbolismo a Medeiros de Albuquerque e isso ainda no ano de 1886 [? Último dígito ilegível]. Muniu-se então dos livros e das revistas dos Simbolistas, recorreu a Lemaitre, a Tellier e bem assim aos críticos mais capazes da nova escola. E já no ano seguinte, nas colunas do Novidades, nos estudos que dedicada ao Ateneu, feria a fundo o assunto sugestivo.

Aqui, no Movimento de 1893, ele nos dá conta do interesse com que estudou a nova escola:  “Essas manifestações, por mais extravagantes que parecessem, feriram a minha atenção seriamente, levando-me logo a concluir que o Decadismo ou Simbolismo em Paris constituía o sintoma ou a repercussão de um fenômeno misterioso, algures agitado em virtude de causas muito poderosas”.

E oferece-nos, a essa altura, informações preciosas, verdadeiras advertências aos críticos do movimento simbolista brasileiro, como aquela de lembrar que foi na Folha Popular que em 1891 se congregaram os novos, que eram então Bernardino Lopes, Perneta, Oscar Rosas e Cruz e Sousa.

Traça um ligeiro julgamento acerca desses vários poetas, encontrando, tanto quanto posso julgar, a nota exata de cada um. Do delicioso B. Lopes, diz “Os seus Cromos lhe haviam dado notoriedade. Versos feitos com carinho, numa zona limitada de sensações… Tinha tiques decadistas, antes mesmo de conhecidos os livros dos revolucionários; a escola nada devia ensinar-lhe; porquanto, senão a sua natureza amorável e límpida, lhe repugnava a iniciação do canon saugrenu dos intransigentes”. De Cruz e Sousa escreve: “De oridem africana, como já disse, sem mescla de sangue branco ou indígena, todas as qualidades de sua raça surgem no poeta em interessante luta com o meio civilizado que é o produto da atividade cerebral de outras raças. A primeira conseqüência desse encontro é a sensação de maravilha. Cruz e Sousa é um maravilhado”.

É no grupo dos simbolistas que, pelo menos na realização artística, ele coloca Raul Pompéia, de quem aqui, a propósito das Canções sem metro, diz estas belas palavras: “Raul Pompéia possui a acuidade dos psicólogos da nova geração e um espírito profundamente inclinado à filosofia sugestiva, de sorte que os seus escritos aparecem sempre impregnados disso a que Proudhon chamava l’expression de l’avenir: tendências tolstóianas para a organização do serviço de salvação da idéia”.

O NATURALISMO

É numa série de artigos do “Novidades” que ele dá, enfim, seriação aos seus estudos acerca do Naturalismo. Havia-os feito antes, esparsamente, em colunas de vários jornais, e continuou a fazê-los mais tarde. O ensaio do “Novidades”, tem, porém, a vantagem de uma coordenação melhor de idéias. Só lhes falta, a esses artigos, o serem coligidos no livro que formam – e que será uma das melhores obras de crítica de Araripe Júnior.

A esse momento ele se acha sob o deslumbramento de Emílio Zola, cuja força criadora o aterroriza, e cujs qualidades de ecritor só encontram aos seus olhos um termo de comparação nas qualidades épicas de um Victor Hugo.

E é com um prazer por assim dizer vegetal – o prazer da raiz da árvore que penetra nas entranhas da terra – que o sentimos penetrar no imenso mundo de Zola, nesses romances espantosos que, segundo o próprio Araripe, “não têm começo nem fim”.

Como numa espécie de resumo de todo o seu julgamento, diz ele, usando uma expressão vaga, mas que pelo próprio vago melhor define [...]



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